segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Enquanto você dorme...

(Leia bem devagar... Porque foi devagar que eu escrevi)
Eu escrevo. Já que não posso dormir, vou me atrever a sonhar noutro lugar. Não estou sentado diante da máquina. Estou do lado de fora da casa e olho para o céu. Desde que fiz a cirurgia não consigo enxergar mais as estrelas em seu esplendor. Tudo é borrado. Vejo um ponto aqui, outro acolá, nada comparado ao enxame de luzes que me lembro ter visto um dia. Porém, aqui é diferente! Agora olho para o céu e posso ver novamente. Mais do que isso, eu vejo o céu não como um fundo negro cravado de pontinhos luminosos, antes, sim, como uma plácida luz única portadora de nervuras escuras. O céu em toda sua extensão. A abóboda celeste é meu globo ocular irrigado por veias tão pequeninas que mais se assemelham a um emaranhado de teias de aranha. Será que fiquei tanto tempo sem usar meu cérebro? Ou será que o uso de menos? Tanto faz! Mas, por que olho para o céu? Procuro alguma benção ou aprovação? Meu gato passa correndo sobre meus pés descalços. Rápido, e muito contente com alguma coisa. Presta-me um favor sem perceber (ou teria percebido?), afasta de mim tais questões menores. Aviso-me que não tenho compromisso com o Sentido, a concordância ou a correção. Meu gato pára aos meus pés e olha dentro dos meus olhos. Noite clara, mas, mesmo assim suas pupilas estão dilatadas ao máximo. Ele pode enxergar meus sentimentos facilmente, só precisa da luz das estrelas para isso. Ele olha lá no fundo, raramente um humano se atreve a ir tão fundo num olhar. O que ele vê? A luz das estrelas desce ardente e sussurrante e vai para os olhos dele. Contudo ela não para ali. De seus olhos saltam aos meus. E eu posso enxergar toda a imensidão dentro de um simples gato bobo mijão. Ainda com o olhar fixo no meu ele lança um miado baixo, difícil de ouvir. Se não fossem meus sentidos estarem aguçados como suas pupilas dilatadas eu não poderia ouví-lo. O miado foi um aviso, ele iria saltar. Sorte a minha estar com jeans. lentamente ele vai cravando as unhas perna acima. Eu não o espanto, ele quer me dizer algo. Finalmente chega à minha blusa. Suas unhas vão estragar o tecido, o pensamento vai embora tão rápido quanto veio. A blusa é menos resistente. As pontas das garras atravessam o pano e acham sustentação em minha pele. Por que eu alimentei tanto esse bichano? Queima! Unhas peçonhentas? Seja rápido gato! Mas ele continua no mesmo passo em sua escalada. Eu cerro os dentes. Puta que pariu!!! Argh! Meu mamilo!!... A dor escorre nos cabelos. Finalmente as garras se acomodam no ombro esquerdo e ele aproxima seu nariz gelado do meu ouvido: "Navigare necesse; vivere non est necesse". Fala e começa a ronronar. Logo depois salta ao chão e bate em retirada no encalço de um inseto voador. Eu aproveito que estou, além de em pé olhando para o céu, sentado diante de meu computador e acesso o Goolge. A rede me informa: "'Navigare necesse; vivere non est necesse' - latim, frase de Pompeu, general romano, 106-48 aC., dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra, cf. Plutarco, in Vida de Pompeu" (sic). A nota acompanha uma poesia, Navegar é Preciso, Fernando Pessoa. Meu corpo ainda sente a ingrata escalada. O gato brinca debaixo da mesa. Navegar é preciso... Leio o poema e percebo o quanto de latim Pessoa bebeu. Eu não bebi tanto, só um pouco, algumas aulas de gramática. Eu bebi do português, e bebi mal. Mais alguma coisa? Sim! Uma música. Qual é o cantor mesmo gato? Ele brinca com um saco plástico jogado no chão (preciso arrumar essa casa). No barulho misturado entre o saco plástico e seus ronronados me chega à mente o nome: Veloso. Eu não gosto dele. Algum site de música qualquer. Hum! Fácil, já está a tocar. O barco, meu coração não aguenta, tanta tormenta alegria... e por aí vai. No refrão: Navegar é preciso, viver não é preciso. Entre Pompeu e eu existe um tempinho decorrido. Pompeu, Pessoa, Veloso e eu. O português me lança outra perspectiva, outra possibilidade me é dada e eu a agarro com garras afiadas. O "preciso" do viver não o é de necessidade, é de precisão. Como a de um cirurgião trabalhando em minhas córneas ou a de um belo conceito bem fechado, claro e operacional de Weber. O navegar está dado, por mais exótico que se escolha o destino, em águas azuis, verdes ou vermelhas e, por mais pitoresca que seja a embarcação que se use, saber-se-á quando navega, sempre. Navegar É preciso! Agora, viver... Não há precisão no que seja isso. Viver não É preciso, não está dado. Sem manuais, por mais que minha mãe insista em dizer que sabe o que é melhor. Eu estou no ponto mais alto da região em quilômetros! Desde criança eu cobiçava um dia escalar esse monte. Alto e íngreme. Estradas secretas que levam para dentro do cerradão. O gato não está comigo. Ele ainda não existia nesta parta da minha vida. Voltei alguns anos... Quantos? Dois ou três. Lá estou eu, exausto. Uma bolsa a tira colo com um livro que não ouso ler, uma garrafinha d'água e uma bela romã. Claro! Havia também um osso de vaca. Um grande osso que encontrara num dos vales da acidentada região. O osso me servia de facão para abrir caminho no mato denso. No topo... Pensei que a visão seria mais grandiosa. Entretanto o topo não é tão alto. Nada grandioso de se ver. Mas, grandioso foi o esforço. Sim! Esse foi. Meu corpo. Cada fibra praguejando contra minha vontade. Cada fibra louvando à mesma vontade. Era rochoso. Grandes rochas velhas e gastas pelos séculos. Vacas não chegavam ali. Era muito íngreme para subirem. Quem mais teria desejo tão absurdo? Quem mais teria posto os pés ali? Eu comi a romã doce e depois mijei na rocha. Eu estava só. Quis gritar mas não o fiz, por quê? Eu quero gritar agora mas não o faço, por quê? Eu estou descansando enquanto escrevo. Minha mente se mistura com o espaço em branco que nunca acaba no monitor. Tem um espaço em branco aqui dentro também. Os dois me metem medo. Os dois eu quero preencher. Os dois sempre abrem uma linha a mais quando a anterior está cheia. Eu estou sonhando em qual direção agora? De cima da rocha eu vislumbro uma tempestade que se aproxima. Lá no horizonte clarões, essa vai ser das fortes. Na verdade já estava chuviscando. O mato estava úmido. Eu escorrego e quase desço rolando por algumas dezenas de metros. A mão segura como garras o capim. Eu estou na rocha. De lá avisto meu monitor agora. Ele tem uma luz boba, não é como a das estrelas mas é uma luz. Diferente. O gato sentou na rocha comigo. Meu coração não aguenta a tormenta no horizonte. Alegria. Veloso faz silêncio, é preciso! Um clarão corta o horizonte de dois anos no passado (ou três) e acerta o monitor de meu computador agora, ou seria de meu computador que a faísca salta rumo ao coração da tormenta? Não é luz de raio ainda, nem luz de monitor; é luz de estrela, eu pude perceber, o gato também. Luz de estrela. O osso cai sobre a rocha. O barulho do osso na rocha é a voz do trovão de luz de estrela. Ele diz: Sonhar na rede é difícil porque antes você precisa se acostumar a dormir nela. Uso a rede para estudar, para falar com pessoas, para assistir desenho animado japonês. Nunca usei a rede para dormir antes. Uma tecla salta do teclado, o gato a toma na boca e a ajusta num besouro que agora pode usar sinal de + ou de =, além de §. Eu pego o osso no chão. Havia caído perto de uma moita de capim onde se enrolara uma cascavel. Repenso meu objetivo. Se for descer deste monte não tão alto não será para voltar para casa. Eu vi Um Portal. Subo na luz de estrela, ela é sólida como gelo denso. O coração da tormenta de um lado, o monitor de outro. O gato me acompanha. O osso está em minha mão. Um Portal. Entendo. Minhas pupilas se dilatam ao ver que um pequeno falcão arremeteu sobre a moita da serpente e alçou vôo com ela enroscada em suas pernas. Não como uma presa. Como uma aliada. O livro dentro de minha bolsa badala a décima primeira hora do dia. A água na garrafa borbulha. O gato sobe novamente por meu corpo, agora sem machucar nada. Aproxima-se como um confidente de meu ouvido esquerdo e diz numa voz firme: sigamos!